terça-feira, 9 de outubro de 2012

Estória de pescador, cheiro de cocaína e direito ao silêncio! É preciso levar direitos a sério (DWORKIN)




TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
COMARCA DE SÃO GONÇALO
JUIZO DE DIREITO DA SEGUNDA VARA CRIMINAL



SENTENÇA


Processo nº 0168374-45.2012.8.19.0004


RELATÓRIO

Trata-se de Ação Penal proposta pelo Ministério Público em face de A. D. DA S. A. relativamente aos crimes do art. 33 da Lei 11.343/06, art. 180  e 329, ambos do CP.
É o relatório.

FUNDAMENTAÇÃO

Dos fatos

Os policiais narram em seus depoimentos que estavam em patrulhamento e notaram o acusado que ficou nervoso quando avistou a polícia. Narram, ainda, que abordaram o acusado e na busca pessoal nada foi encontrado que estivesse relacionado com o crime, mas “estava com a quantia de R$ 40,00, sendo que o declarante ao cheirar o dinheiro notou que exalava um forte cheiro de cocaína”. Então, a guarnição desconfiou do acusado e “inquiriu o mesmo sobre a origem do dinheiro; que o mesmo acabou confessando que vendia drogas e levou a guarnição até a casa dele”. Na residência, o acusado teria mostrado seu quarto onde estava escondido uma carga de droga, consistentes em 11 invólucros, totalizando 11 gramas de cocaína.
Informam, em seguida, que quando saiam da residência, perceberam uma motocicleta coberta por um lençol e que a mesma tinha origem ilícita. Por fim, relatam que ao chegarem à delegacia de polícia, o acusado tentou fugir, correndo, e foi detido pelos policiais (fls. 06/09).
Em sede policial, tendo a autoridade policial cumprido as formalidades legais, informou ao então conduzido, de seus direitos constitucionais, dentre os quais o de permanecer calado e este resolveu permanecer em silêncio e só falar em juízo (fls. 04).
Algo parece incoerente!
Note-se que o policial militar disse que ao cheirar a nota que o acusado portava, sentiu “um forte cheiro de cocaína”. Todavia, a professora Irene Muakad, doutora em medicina forense, professora da USP e professora titular da Mackenzie, ensina que o cocainismo em forma de aspiração é o vício de usar a cocaína em pó, produto em forma de sal, obtido por um processo químico, que chega ao consumidor na forma de cristal ou um pó branco, amargo e sem cheiro. (MUAKAD, Irene Batista. A Cocaína e as suas formas de consumo.[1])
Além desta contradição há outras perplexidades nesta estória. Note-se que um indivíduo que não portava nada de ilícito se assusta com a polícia (será que há motivo para isso?). Em seguida, sem que portasse qualquer coisa de ilícito, resolve falar tudo para os policiais, ou seja, que é traficante e inclusive leva os policiais até sua residência. Todavia, ao chegar na delegacia de polícia, advertido de suas garantias constitucionais e com sua integridade física assegurada, seu comportamento abruptamente se modifica, ou seja, resolve usar de seu direito de permanecer em silêncio (fls. 04).
A conclusão só pode ser uma, os fatos não se deram como narrado pelo policial militar. Cocaína, segundo a professora não tem cheiro. Mas, ainda que tivesse cheiro, a suposta confissão do acusado, mesmo que não fosse motivada por qualquer outro estímulo senão seu desejo de colaborar com a polícia, referida confissão não tem validade, pois não foi precedida de informação quanto ao direito de permanecer em silêncio, pois quando o acusado foi levado à autoridade policial e teve tal garantia assegurada, assim exerceu seu direito constitucional.
É no mínimo curioso indagar porque, na rua, perante policiais militares um indivíduo fala tudo, e diante da autoridade policial, revestido o ato das formalidades necessárias, resolve calar. Diversidade de circunstâncias diversidade de comportamento. 
Da análise jurídica
O Procurador de Justiça e Professor Afrânio Silva Jardim publicou um parecer que se amolda perfeitamente ao presente caso. Logo de início, o culto professor e festejado membro do Parquet já adverte:
Uma premissa conceitual deve ser estabelecida em todo o processo de interpretação das normas constitucionais que tutelam os chamados direitos individuais: ao estabelecer regras que asseguram um processo penal democrático, o Estado sabe, de caso pensado, que irá absolver culpados. Entretanto, faz esta opção para não assumir igual risco de condenar inocentes ou mesmo culpados a penas injustas (Tutela Constitucional do Domicílio e Prisão em Flagrante. In Temas para uma Perspectiva Crítica do Direito. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2010, p. 12).
 No parecer o referido doutrinador examinava uma decisão de nossa lavra, na qual rejeitamos uma denúncia em razão de policiais militares terem ingressado em uma residência, a noite e sem mandado, e prenderam os residentes por tráfico de entorpecentes. Conclui o processualista, em seu parecer, pelo acerto da rejeição das denúncias em razão da violação a normas constitucionais fundamentais. 
O nosso atual caso em muito se assemelha a estes e exige muita atenção para a efetivação de garantias constitucionais. No caso vertente, não foi respeitado por parte dos policiais militares o direito ao silêncio e houve uma confissão inválida que conduziu os policiais até o interior da residência. Tendo o ingresso ocorrido sem consentimento válido, este é ilícito e tudo que se obteve a partir daí é ilícito por derivação.
O direito ao silêncio, o nemo tenetur se detegere, pode parecer um produto de luxo ou uma sofisticação incompatível com nossa realidade. Mas se pretendemos diminuir o hiato entre o ser e o dever ser, é preciso seguir a advertência de DWORKIN e levar “os direitos a sério”[2].  
Vejamos:
A Constituição é clara ao estabelecer que o domicílio é asilo inviolável da pessoa, nele só se podendo ingressar na hipótese de flagrante delito, desastre, para prestar socorro ou, durante o dia, com autorização judicial. Fora destas hipóteses taxativas não é possível o ingresso no domicílio, lembrando-se sempre que o conceito deste é amplo (art. 5o, XI, da CRF/1988).
A situação de flagrante significa visibilidade material do delito[3]. Não existe flagrante quando não há um mínimo de aparência perceptível aos sentidos relativamente à existência de um crime, nos termos do art. 302 do CPP. Quando se ingressa em uma residência sem o mínimo de visibilidade do delito, há violação do domicílio e a superveniente apreensão de droga passa a ser ilícita por força dos incisos XI e LVI do art. 5o da Constituição. O mesmo ocorre se o ingresso deu-se com base em consentimento não esclarecido ou viciado.
Não se pode confundir “cometimento de delito” com “estado de flagrância”. Um delito pode estar sendo cometido sem que ninguém perceba (e isso não autoriza ingresso no domicílio), mas para a configuração do flagrante há que se ter percepção pelos sentidos, podendo, inclusive, o delito já ter sido consumado e a percepção ter ocorrido logo após, como nas hipóteses do flagrante impróprio e o presumido.
A adoção de entendimento no sentido contrário conduz a um verdadeiro absurdo, pois se juiz não cumpre a exigência do art. 186 do CPP, a confissão do acusado é inválida. Da mesma forma, se o Delegado de Polícia não cumpre a exigência do art. 6°, V, c/c art. 186 do CPP, a confissão também não serve como justa causa para a ação penal. Não obstante, o policial militar arranca uma confissão do acusado sem tais advertências e esta teria validade? Por óbvio não podemos aceitar tal confissão sob pena de conferirmos ao PM um poder soberano, superior ao do Juiz e do Delegado de Polícia.
Voltando a lição de Afrânio Silva Jardim, temos a definição da situação de flagrante que autoriza o ingresso:
Sempre entendemos que a tal permissão só é possível diante de flagrante delito efetivo e real, ou seja, só nas hipóteses previstas no art. 302, inc. I e II, do Cod. Proc. Penal. Isto se depreende do próprio artigo 293 do Cod. Proc. Penal, posto em vigor durante a ditadura de Getúlio Vargas. Por este dispositivo, no caso de perseguição, nem com mandado em mãos a polícia pode entrar à noite nas residências, sem o consentimento dos moradores. Na verdade, as duas últimas hipóteses do citado art. 302 não são flagrante, por isso que o legislador consignou; “considera-se em flagrante...”. Assim, não se pode permitir que o legislador diminua a garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio, ampliando as situações que não são de verdadeiro flagrante para nelas permitir a prisão (JARDIM, Tutela Constitucional, op. cit., p. 13).
Com efeito, nem mesmo se admitíssemos que o “cheiro da nota” fosse um dado verídico, e se o considerássemos como uma situação de flagrante presumido, ainda assim, na precisa lição de Afrânio Silva Jardim, o ingresso não estaria autorizado e a apreensão da droga seria ilícita.  
Note-se que não estamos aqui sustentando tese radical e isolada, pois temos ao nosso socorro não só um dois maiores ícones do Ministério Público, o Professor Afrânio Silva Jardim, como também um dos mais tradicionais processualistas do Brasil como se vê da pena de Tourinho Filho que também abrilhantou o quadro do Ministério Público:
Preciso é, contudo, haja certeza de que um crime está se consumando. Do contrário, a expressão “flagrante” servirá para que os agentes da Polícia adentrem uma residência e... quebrada a infranqueabilidade domiciliar, dêem a desculpa esfarrapada de que pensavam que havia, no interior da casa, armazenada, substância entorpecente... (Processo Penal, São Paulo, Saraiva, 1992, vol. 3, p. 361).
Com efeito, dos mais tradicionais aos mais libertários, ou seja, de Tourinho a Gerado Prado[4], é límpida a ideia da inviolabilidade do domicílio e da irregularidade da prisão que violar este preceito. Pensar o contrário só se justifica em razão de um apelo utilitarista que remonta Bentham, e se traduz na lógica de que “os fins justificam os meios”, o que atenta contra o Estado Democrático de Direito e a Constituição da República de 1988.
O resultado é que o ingresso ilegal no domicílio contaminou todas as provas do crime, não sobrando nada lícito para formar a justa causa da ação penal. Não só a prova diretamente ilícita é vedada pela Constituição, mas tudo que derivar da ilicitude será considerado imprestável ao processo, é o que ficou definido na experiência estadunidense como fruits of the poisonous tree (frutos da árvore envenenada), que parte da comparação de que uma árvore envenenada produz frutos envenenados, construindo-se então a teoria sobre as provas ilícitas por derivação, que foi expressamente adotada no art. 157 do CPP.
Desta forma, o encontro da motocicleta e das 11 gramas de cocaína foi ilícito e, portanto, a oposição do acusado não foi a ato “legal” como preceitua o art. 329 do CP, contaminada, desta forma, a justa causa de todas as imputações.
Destarte, não há outro caminho, senão a rejeição liminar da denúncia, ex vi, art. 396 c/c art. 395, III do CPP.
DISPOSITIVO
Isto posto, REJEITO A DENÚNCIA formulada em face de A D DA S A relativamente aos crimes do art. 33 da Lei 11.343/06, art. 180 e 329, ambos do CP, ex vi, art. 395, III C/C art. 396 ambos do CPP.
Expeça-se alvará de soltura.
PRI. Após o trânsito dê-se baixa e arquive-se.
São Gonçalo, 15 de setembro 2012.

ANDRÉ LUIZ NICOLITT
Juiz de Direito





[2] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
[3].  Carnelutti, Francesco. Lecciones sobre el Proceso Penal, 4 Tomos. Trad. Santiago Sentís Melendo. Buenos Aires: Bosch, 1950, p. 78.

[4] Processo n° 2004.001.027085-8