O tema cotas para afro-descendentes nas Universidades é
sempre acalorado e a discussão é permeada por argumentos que se firmam
basicamente em três eixos: a injustiça de se contemplar alguém que teve
pontuação menor; a queda na qualidade das universidades e por fim a idéia de
que no Brasil não há preconceito racial e sim social, bastando então a cota
para alunos carentes.
Por outro lado, a Constituição em seus artigos 1º e 3º
elege como valores e objetivos fundamentais a dignidade humana, o pluralismo, a
erradicação das desigualdades e a construção de uma sociedade justa e
solidária. Assim, todos os órgãos do Estado devem buscar tais objetivos,
principalmente a Universidade. Não há pluralismo quando percebemos a ausência
de afro-descendentes na universidade.
No vestibular, só olhamos o ponto de chegada e nunca o
ponto de partida. Considerando o princípio constitucional da igualdade, podemos
ter por símbolo uma corrida na qual todos partem de posições iguais. Aí sim
podemos olhar apenas a chegada. Todavia, na vida as pessoas partem de posições
desiguais: os negros partem de uma
posição inegavelmente desfavorável que a própria história brasileira lhes
assegurou. Abriram-se as senzalas, mas nada foi feito além disso. É o que se
chama de dívida histórica. Desta forma, não há injustiça quando a vaga é
preenchida por alguém que teve uma pontuação menor se as dificuldades
encontradas por este foram maiores. Isto é concretamente o princípio da
igualdade. Aliás, avaliar de maneira igual pessoas em situações desiguais é
inconstitucional por violar o princípio da igualdade material.
O segundo argumento nos leva a refletir sobre o papel da
universidade na sociedade brasileira. Destina-se a manter a formação de uma
elite? Cumpre sua função quando recebe os melhores alunos e praticamente por
tal razão destaca-se no cenário acadêmico? Para evitar tais distorções há
estudos para que a avaliação dos cursos se faça no ingresso e na saída, o que
possibilitaria mensurar a contribuição da universidade, pois não há êxito para
esta, sob o aspecto do ensino, se ela só é capaz de selecionar alunos bons e
entregá-los nas mesmas condições à sociedade. O êxito do ensino reside no
aprimoramento do aluno. Sob o aspecto social, não pode traduzir-se na
manutenção da desigualdade e de uma ordem social injusta e excludente. Eis a
questão: deverá a universidade contentar-se com a concentração do saber e o
elitismo acadêmico, ou deverá assumir seu papel na transformação da realidade?
Por fim, o porquê dos negros ao invés de tão-somente
contemplar-se os carentes. Porque além da pobreza, o negro sofre com outros
fatores de discriminação. A criança pobre convive com a pobreza, a criança
negra e pobre, convive ainda com as expressões pejorativas, com as
discriminações, com olhares desconfiados, assim como a mulher convive com
inúmeros dissabores simplesmente por ser mulher e por isso às vezes a lei lhe
dá tratamento diferenciado. Há, nas questões de gênero e de cor, dificuldades
que transcendem a pobreza. Abaixo do trópico, o preconceito é disfarçado e
quando não se vê o problema, mais difícil é superá-lo.
Para refletirmos, deixo uma indagação de Loïc Wacquant,
professor da Universidade de Berkeley, na Califórnia e do Collége de France.
Por que não causa estranheza ou perplexidade não termos, na universidade, o
mesmo percentual de negros que temos na penitenciária? Na prisão a cota dos negros
é grande e ninguém reclama.