PLANTÃO JUDICIÁRIO NOTURNO
DECISÃO
Trata-se de requerimento de liberdade provisória em favor de
J. L. R. DA S., indiciado por roubo impróprio tentado, cuja subtração seria de alguns pedaços de carne bovina. A
suposta violência resultou do fato de ter tentado se desvencilhar do segurança
quando foi segurado, quando então tentou dar socos neste.
O Ministério Público opinou pelo indeferimento ao argumento
de que estão presentes os indícios de autoria e que a ordem pública poderia
estar ameaçada com o retorno do indiciado a novos crimes inclusive com
violência já que tentou dar socos no segurança do estabelecimento.
FUNDAMENTAÇÃO
Prólogo
Ver a foto na FAC deste rapaz que mal completou 18 anos e já se
entregou à subtração e ler a descrição dos fatos no APF me remonta uma imagem mental que reconduz à poesia de
Castro Alves:
Era um sonho dantesco... o
tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...
Senhor Deus dos
desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!
Quem são estes desgraçados
Que não encontram em
vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!...
São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes,
bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão. . .
Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Senhor Deus dos
desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
É uma imagem dantesca de um afrodescendente com pedaços de
carne bovina tentando se desvencilhar do segurança e fugir com sua caça, sabe
Deus, para alimentar a quem e a quantos. Quem são estes que arriscam sua
liberdade, desesperadamente, por um pedaço de carne bovina? Senhor Deus dos
desgraçados, me diz vós senhor Deus, se eu deliro ou se é verdade, tanto horror
perante os céus...?
É mais um filho do deserto, onde a terra esposava luz e hoje
é celeiro de horrores. Ontem, guerreava com tigres mosqueados, hoje, a caça
urbana pela sobrevivência, são guerreiros que subtraem carne que não correm
pelos campos, mas são eletronicamente vigiados.
Suporte Jurídico
Nosso sistema constitucional optou claramente por fazer da
liberdade a regra e da prisão processual, a exceção. Assim, prescreveu, em seu
art. 5º, o due process of law como pressuposto da perda da liberdade.
Acentuou que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem
judicial, e que ninguém será mantido preso quando for possível a liberdade
provisória, com ou sem fiança, determinando, ainda, que a prisão ilegal seja relaxada.
Andou bem o constituinte a fim de evitar os grandes males que
a prisão processual pode trazer, males estes que já eram alvo das preocupações
de Carnelutti, ao afirmar que:
“en la práctica tales inconvenientes son de
una gravedad excepcional; baste decir que no dejan de ser frecuentes los casos
de absolución de imputados, que son dejados en custodia, (...) lo que importa
es reducir al mínimo el riesgo de injusticia, que la custodia preventiva lleva
consigo”(na prática tais
inconvenientes são de uma gravidade excepcional, basta dizer que deixam de ser
freqüentes os casos de absolvição de acusados que são colocados em custódia, o
que importa é reduzir o mínimo o risco de injustiça que a custódia preventiva
traz consigo).
Desta forma, a prisão processual só
pode ser concebida como medida excepcional de natureza cautelar, instrumental,
ligada à estreita necessidade de preservar o processo e sua efetividade.
Apenas neste sentido é possível a convivência harmônica da prisão processual
com o princípio constitucional da presunção de inocência, que atua como limite
teleológico da prisão cautelar.
Para além da questão da excepcionalidade da medida, o
critério de proporcionalidade também deve ser observado. A toda evidência não
faz sentido decretar ou manter uma prisão provisória quando provavelmente não
será a prisão pena a medida definitiva a ser aplicada em razão de mecanismos de
despenalização como a substituição da pena privativa de liberdade por penas
restritivas de direitos ou penas pecuniárias (art. 44 do CP), além da suspensão
do processo (art. 89 da Lei 9099/95) ou da suspensão da pena (art. 77 do CP).
Suporte Fático
O argumento do Parquet não
pode sustentar a prisão. Não se pode manter uma prisão, na atual ordem
constitucional, partindo de uma “dedução” de que o indiciado possa voltar a
delinqüir e com violência.
As testemunhas dos fatos objetos do flagrante são policiais e
seguranças, de forma que, não há qualquer risco à instrução, tampouco a ordem
pública. Aliás, a expressão ordem pública para
além de ser um conceito vago e indeterminado, sua origem tem raízes
nazi-fascistas abrigada no CPP por influência do código Rocco da Itália.
A prisão cautelar só é compatível com
o princípio da presunção de inocência quando tem por objetivo a preservação do
processo, pois do contrário transforma-se em antecipação de pena. O que tutela,
ou deveria tutelar, a ordem pública (prevenção geral e específica) é a pena.
Usar a prisão processual para garantir a ordem pública é antecipar os efeitos
da pena, o que é inconstitucional.
Por fim, a consulta sobre antecedentes feita pelo cartório
operou-se na base de dados geradora da FAC, portanto, constata que o indiciado
não ostenta antecedentes criminais a não ser um furto tentado, ou seja, crime
de baixa gravidade.
O art. 312 do CPP não autoriza a prisão processual com base
em axiomas, deduções ou qualquer outro mecanismo de integração fática. A
jurisprudência do STF tem sido primorosa em consagrar a presunção de inocência.
Em lapidar voto (HC 93056) o Ministro
Celso de Mello destaca que o discurso autoritário que prestigia a
ideologia da lei e ordem não pode se sobrepor as garantias fundamentais da
Constituição. Embora longa, vale transcrever a ementa:
A privação
cautelar da liberdade individual reveste-se de caráter excepcional, somente
devendo ser decretada ou mantida em situações de absoluta necessidade. A prisão
cautelar, para legitimar-se em face de nosso sistema jurídico, impõe - além da
satisfação dos pressupostos a que se refere o art. 312 do CPP (prova da existência
material do crime e presença de indícios suficientes de autoria) - que se
evidenciem, com fundamento em base empírica idônea, razões justificadoras da
imprescindibilidade dessa extraordinária medida cautelar de privação da
liberdade do indiciado ou do réu. - A questão da decretabilidade ou manutenção
da prisão cautelar. Possibilidade excepcional, desde que satisfeitos os
requisitos mencionados no art. 312 do CPP. Necessidade da verificação
concreta, em cada caso, da imprescindibilidade da adoção dessa medida
extraordinária. Precedentes. A MANUTENÇÃO DA PRISÃO EM FLAGRANTE - ENQUANTO
MEDIDA DE NATUREZA CAUTELAR - NÃO PODE SER UTILIZADA COMO INSTRUMENTO DE
PUNIÇÃO ANTECIPADA DO INDICIADO OU DO RÉU. - A prisão cautelar não pode - e não
deve - ser utilizada, pelo Poder Público, como instrumento de punição
antecipada daquele a quem se imputou a prática do delito, pois, no sistema
jurídico brasileiro, fundado em bases democráticas, prevalece o princípio da
liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com
condenações sem defesa prévia. A prisão cautelar - que não deve ser confundida
com a prisão penal - não objetiva infligir punição àquele que sofre a sua
decretação, mas destina-se, considerada a função cautelar que lhe é inerente, a
atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal. A
GRAVIDADE EM
ABSTRATO DO CRIME NÃO CONSTITUI FATOR DE LEGITIMAÇÃO DA
PRIVAÇÃO CAUTELAR DA LIBERDADE. - A natureza da infração penal não constitui,
só por si, fundamento justificador da decretação da prisão cautelar daquele que
sofre a persecução criminal instaurada pelo Estado. Precedentes. AUSÊNCIA DE
DEMONSTRAÇÃO, NO CASO, DA NECESSIDADE CONCRETA DE MANTER-SE A PRISÃO EM FLAGRANTE DO PACIENTE.
- Sem que se caracterize situação de real necessidade, não se legitima a
privação cautelar da liberdade individual do indiciado ou do réu. Ausentes
razões de necessidade, revela-se incabível, ante a sua excepcionalidade, a
decretação ou a subsistência da prisão cautelar. O POSTULADO CONSTITUCIONAL DA
PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA IMPEDE QUE O ESTADO TRATE, COMO SE CULPADO FOSSE, AQUELE
QUE AINDA NÃO SOFREU CONDENAÇÃO PENAL IRRECORRÍVEL. - A prerrogativa
jurídica da liberdade - que possui extração constitucional (CF, art. 5º, LXI e
LXV) - não pode ser ofendida por interpretações doutrinárias ou
jurisprudenciais, que, fundadas em preocupante discurso de conteúdo
autoritário, culminam por consagrar, paradoxalmente, em detrimento de direitos
e garantias fundamentais proclamados pela Constituição da República, a ideologia
da lei e da ordem. - Mesmo que se trate de pessoa acusada da suposta
prática de crime hediondo, e até que sobrevenha sentença penal condenatória
irrecorrível, não se revela possível - por efeito de insuperável vedação
constitucional (CF, art. 5º, LVII) - presumir-lhe a culpabilidade. No sistema
jurídico brasileiro, não se admite, por evidente incompatibilidade com o texto
da Constituição, presunção de culpa em sede processual penal. Inexiste, em
conseqüência, no modelo que consagra o processo penal democrático, a
possibilidade jurídico-constitucional de culpa por mera suspeita ou por simples
presunção. - Ninguém pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a
natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que
exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada em julgado. O princípio
constitucional da presunção de inocência, em nosso sistema jurídico, consagra,
além de outras relevantes conseqüências, uma regra de tratamento que impede o
Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado,
ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados,
definitivamente, por sentença do Poder Judiciário. Precedentes. Precedentes.
(STF, HC 93056)
Por fim, a dinâmica do fato não demonstra ter havido
violência ao ponto de inviabilizar a concessão da liberdade, sendo que a
gravidade abstrata do delito não pode justificar a prisão:
STJ - HC 113871 / RJ
HABEAS CORPUS
2008/0183739-6
HABEAS CORPUS. ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DE
ENTORPECENTES. PRISÃO PREVENTIVA. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA.
FUNDAMENTAÇÃO GENÉRICA. GRAVIDADE ABSTRATA. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS
CONCRETOS. ORDEM CONCEDIDA.
1 - A prisão cautelar, assim entendida aquela
que antecede a condenação transitada em julgado, só pode ser imposta se evidenciada,
com explícita fundamentação, a necessidade da rigorosa providência.
2 - Sendo decretada a prisão preventiva com
base na gravidade abstrata do delito, ao único fundamento de que o
paciente integra "uma grande e complexa organização criminosa", dissociado
de elementos concretos e individualizadores da sua conduta, fica evidenciado o
constrangimento ilegal.
Isto posto, DEFIRO A LIBERDADE PROVISÓRIA à J. L. R. DA S. Expeça-se
alvará de soltura e lavre-se o termo. Dê ciência ao Promotor de Justiça de
plantão.
Rio
de Janeiro, 19 de setembro de 2009.
ANDRÉ LUIZ
NICOLITT
Juiz de
Plantão